"Sentir as nossas gentes"
São Jorge, situada no Grupo Central nos Açores, esta ilha para os seus residentes é o “coração” dos Açores. Pela localização assim como pelo que oferece a todos os que têm o privilégio de a visitar ou nela residir. É uma ilha altaneira, cheia de arribas altas e no sopé da montanha encontram-se as famosas Fajãs. Pedindo a um jorgense para este descrever o que é uma Fajã e este dirá: fecham-se os olhos e… e sente-se; a brisa do mar a beijar o nosso rosto; o cheiro da ressalga… do café acabado de fazer na casa do vizinho; o som dos cagarros e dos garajaus interrompido pela harmoniosa sinfonia das ondas a rebentar juntos ás rochas; são as memórias; os amores de Verão, o abraço dos nossos; o segredo contado entre os quentes pingos de chuva no Verão; as Festas; a simpatia e o acolhimento de quem ali vive; o provar o vinho na adega do amigo que nos convida quando ali passamos; os dias de trabalho que terminam num jantar com quem mais amamos; o banho de mar, refrescante e que nos fortalece, a vida, o amor.
O Povo Açoriano é um Povo resiliente e lutador, adquiriu uma particular capacidade de “desenrasque” que o distingue imensamente. Imaginemos os primeiros povoadores, explorando uma terra inóspita, coberta de Laura e Silva, enfrentando intempéries Herculanas e terramotos frequentes, acompanhados de erupções vulcânicas. Estes homens e mulheres por entre desafios e dificuldades conseguiram sobreviver a estes obstáculos e proliferaram. De geração em geração foram passando conhecimentos que permitiram às gerações vindouras uma melhor adaptação ao meio que escolheram para residir. Por entre inúmeras tradições e costumes destaco o Pão de Milho. A Freguesia dos Rosais, localizada na Ilha de São Jorge foi durante décadas conhecida pelas suas grandes produções de cereais, principalmente o milho. Inclusive foi batizada de "o celeiro da ilha". Sem o auxílio de maquinarias, cada terreno era cultivado com recurso à mão de obra manual, e em alguma ocasiões com a ajuda do cavalo ou junta de bois. O Pão era o modo de sustento. Após a transformação dos cereais em farinha, e com a receita passada de mãe para filha cozia-se o pão de milho. Numa cozinha pouco composta, transforma-se num lugar de magia. A lenha a arder no forno, o calor que se sente num dia de frio, a massa a levedar, a mistura de cheiros leva-nos a um passado que hoje nos faz querer voltar no tempo.
Em dias de frio, aquecidos pela lenha a crepitar, sente-se o cheiro dum espaço que se prepara para a cozedura do pão de milho. Acolhedor e simples, viajamos ao passado e recordamos as nossas gentes. As mãos calejadas contam-nos a história duma vida, enquanto amassam e preparam as formas do pão. Com um olhar profundo olha-se pela janela enquanto lá fora a chuva cai. Surgem as lembranças de como era importante esta arte. Aquele cheiro da massa que leveda isola-nos do presente, atribui-se uma essência de alegria. Eram assim os dias junto ao forno. Um olhar cansado mas feliz, uma simplicidade perante os curiosos, numa tentativa de ensinar aqueles que ainda acreditam nas tradições. São estes os ensinamentos que nos definem perante as dificuldades que existiam. As lembranças são uma parte de nós e sem elas não saberíamos entender que, com tão pouco, se enchia uma casa de abundância e alegria. A Senhora Serafina é um doce de pessoa. Sempre pronta para dois dedos de conversa. Numa manhã de Novembro onde o sol rompia de quando em vez pelas nuvens que traziam umas “pancadas de água” - como dizia a Senhora Serafina, deu-se o registo de uma das últimas cozeduras desta simpática senhora. O entusiasmo e a vontade de mostrar o saber fazer, marcaram esta sessão. Sempre atarefada para que tudo ficasse um primor, não impediram a compartilha de conhecimentos e uma conversa muito agradável. Com 75 anos, no ano em que produzi esta reportagem, a Senhora Serafina ainda parecia uma “rapariga nova”. “Aprendi a cozer pão com 14 anos” - conto-me enquanto colocava a massa no alguidar, não deixando de desenhar uma cruz na superfície da massa “para dar sorte”. Um ritual com centenas de repetições vida fora. Um modo de viver que conhece desde criança. “A minha mãe usava água benta para escaldar a farinha. Acordava de madrugada. A água não podia ver o Sol.” – disse a Senhora Serafina enquanto esperava que a massa ficasse pronta. De ar cansado mas com uma missão: terminar mais uma fornada de Pão, lá se levantou para ver se estava na hora de colocar o pão no forno. De lenço e chapéu na cabeça para se proteger do calor do forno a nossa amiga espreita uma vez mais por debaixo das cobertas para ver como está a massa…. “Ainda falta um bocadinho” Fiquei entretanto sozinho nesta cozinha que mais parecia uma máquina do tempo. Viajei 50 anos ao passado e estou a presenciar o quotidiano da geração dos meus avós. Silêncio, interrompido apenas pelo crepitar do lume no forno, raios de sol rompem por entre o fumo que se acumulou na cozinha, criando uma espécie de trilho até ao alguidar que repousa numa mesa criada com a altura certa para a Senhora Serafina trabalhar a massa com as suas mãos. Ali estou, a receber todos estes estímulos que me fazem uma pessoa orgulhosa e feliz. Por ter nascido nesta extraordinária ilha e por conhecer pessoas maravilhosas como esta minha amiga. Chegou finalmente a hora da massa ir para o forno. Mais um frenesim. Sempre energética, lá vai a Senhora Serafina com o seu foco. “Pazada atrás de Pazada” vai-se compondo o forno. Sempre de pé ligeiro e enquanto o Pão não fica pronto, a Senhora Serafina prepara a mesa para colocar os Pães a arrefecer. Remove da cozinha a lenha remanescente e prepara-se para a última fase deste processo. “O pão tá cozido” – avisou-me enquanto se preparava para retirar o primeiro pão de milho do forno. Pá novamente em acção. Sai o primeiro Pão. Varreu o “solo”, inspecionou todos os detalhes e com um sorriso de contagiar, olho-me nos olhos e acenou afirmativamente como quem diz “bom trabalho, ficou bom”. Colocou-o dentro de um prato e rapidamente retomou o controlo da pá para retirar os restantes pães. A minha viagem estava quase a terminar. Foram quase 8 horas ali com esta senhora simpática, pareciam apenas 8 minutos. Sempre feliz por receber a minha visita na sua casa, foi com muita alegria que soube que utilizei as fotos da nossa sessão para apresentar a um concurso. Quase 7 anos depois só agora torno público esta foto-reportagem. “Sei que vai correr bem. Gosto tanto de me ver nas tuas fotografias. Tão lindas” – foram as palavras da Senhora Serafina quando lhe mostrei todo este trabalho. De lágrima no olho segurou-me nas mãos e murmurou - “O meu marido tinha gostado tanto de ver estas fotografias”.
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